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Síndrome de Susac - Caso clínico


CASO CLÍNICO

A paciente procurou o consultório em outubro de 1995, quando tinha 34 anos de idade, com história de ter apresentado há cerca de 10 anos episódio de distúrbio de comportamento associado a perda do controle esfincteriano e hipoacusia. Esta última continuou a progredir até cerca de 1 ano após a primeira crise. Na época foi tratada por psiquiatra com medicação cujo nome não se recorda, tendo apresentado melhora em 30 dias, restando porém dificuldade de marcha e hipoacusia. Queixava-se de piora da visão na primeira consulta, mas o quadro motor permanecia estável.
Devido à hipoacusia, havia procurado anteriormente vários otorrinolaringologistas, tendo sido submetida a diversas cirurgias com colocação de prótese auditiva bilateral, sem apresentar, entretanto, qualquer melhora do déficit auditivo. A paciente trouxe alguns exames que já haviam sido solicitados durante a investigação prévia: angiografia com fluoresceína mostrando neurite isquêmica (interrogada), ressonância magnética (RM) de crânio com pequenos focos de hiperintensidade periventriculares e líquor normal. Os achados do exame neurológico incluíam voz escandida, marcha discretamente atáxica, hiperreflexia bilateral assimétrica (mais intensa à esquerda), com reflexos cutâneo-plantares em flexão, discreta dismetria na prova dedo-nariz à esquerda e diminuição da acuidade auditiva e visual com palidez de papilas. A avaliação dos campos visuais mostrava comprometimento dos campos inferiores.

Os exames laboratoriais adicionais solicitados (hemograma, bioquímica, hepatograma, provas de atividade reumática, fator anti-nuclear - FAN, dosagem de anticorpos anti-DNA e eletroforese de proteínas) foram normais, assim como os potenciais evocados visuais e somato-sensitivos. O mesmo não ocorreu com o potencial evocado auditivo, que foi de baixíssima amplitude.
Durante todo o tempo de acompanhamento (última consulta em 1999), manteve-se clinicamente estável, sendo tratada com pentoxifilina, hidroxizine, ácido acetil-salicílico e sintomáticos (dimenidrato e flunarizina para episódios de vertigem). Realizou diversos exames de RM, audiometria e campimetria sem alterações em relação aos exames iniciais (Figs 1-3). A paciente, entretanto, permanece com sequelas: alterações do campo visual e hipoacusia bilateral, além de queixa de déficit de memória.




DISCUSSÃO
A síndrome de Susac caracteriza-se pela presença de uma tríade (que pode aparecer de forma completa ou incompleta em cada paciente) composta de encefalopatia, hipoacusia neurossensorial e alterações visuais5,6. Ao exame histopatológico são observados microinfartos restritos à cóclea, pequenas arteríolas da retina e cérebro, causados por vasculopatia não-inflamatória. A sua fisiopatologia é controversa. Os estudos histopatológicos sugerem relação com a ocorrência de pequenos infartos devido a oclusões arteriolares, de mecanismo ainda desconhecido. Não foram identificadas necrose fibrinóide ou vasculite e nenhum dos pacientes descritos na literatura preencheu os critérios clínicos ou sorológicos para o diagnóstico de qualquer doença do tecido conectivo. Não foram igualmente identificadas alterações de coagulação que pudessem sugerir um estado de hipercoagulabilidade, ou evidências de microembolismo. Da mesma forma a hipótese de afecção imunomediada deflagrada por infecções virais não foi confirmada. Além disso, a resolução completa das manifestações neurorradiológicas, descritas em alguns casos, seria incomum no infarto cerebral, implicando a ocorrência de isquemia ou inflamação perivascular na patogênese.4
Sugeriu-se que o acometimento tecidual altamente seletivo verificado nesta síndrome esteja relacionado à origem embriologicamente comum do cérebro, retina e cóclea. Tanto a retina como o ouvido interno apresentam barreiras análogas à barreira hemato-encefálica, cujo endotélio pode apresentar propriedades estruturais, funcionais e antigênicas comuns2,9,10.
Em cerca de 40% dos casos pode-se encontrar cefaléia associada ou não a aura visual como sintoma prodrômico. A síndrome cerebral orgânica tem início rápido com disfunção cognitiva em cerca de 75% dos pacientes, caracterizada principalmente por disfunção da memória recente e apatia ou desorientação flutuante, além de comportamento bizarro ou paranóide, alucinações ou bulimia2. Ao exame físico, podemos encontrar hiperreflexia, com sinal de Babinski bilateral, marcha instável, disartria, dismetria, paralisias de nervos cranianos (principalmente III, VI e VII nervos), hemidisestesia, hemiparesia, mioclonias e incontinência urinária. O primeiro ataque pode ser precedido de alteração mental ou de personalidade lentamente progressivas (em algumas semanas). A RM pode mostrar lesões multifocais hiperintensas em T2 interessando a substância branca e cinzenta supra e infratentorial, com captação durante as crises2.
Em pacientes submetidos à arteriografia cerebral, esta foi normal em 20 dos 22 casos descritos4. Ao eletrencefalograma podem ser vistas ondas lentas difusas ou pontas e ondas2,6. O líquor apresenta aumento discreto de proteínas em grande parte dos casos, com pleocitose linfocitária discreta em 50%2,4.
A retinopatia é caracterizada pela presença de oclusões múltiplas bilaterais de ramos das artérias retinianas, podendo haver prejuízo da visão se localizadas no pólo posterior. Por outro lado, as oclusões restritas á porção periférica da retina podem ser assintomáticas (neste caso, a fundoscopia pode ser normal). Não são encontradas células no vítreo ou câmara anterior (ou seja, não há uveíte associada), proliferação neovascular, sangramento intravítreo, descolamento espontâneo da retina ou acometimento venoso2,4,6. O aspecto à angiografia com fluoresceína é indistinguível de vasculite retiniana. Há estreitamento arterial e extravasamento de contraste na fase tardia do exame, mas a hemorragia retiniana é menos frequente4.
A hipoacusia é de natureza neurossensorial e de instalação aguda, bilateral e assimétrica, podendo ser o sintoma inicial e estar associada a vertigem, instabilidade da marcha, zumbido, náusea, vômitos e nistagmo proeminente, ou por outro lado, ser assintomática e só diagnosticada após a realização de audiograma. Este mostra comprometimento principalmente das freqüências mais baixas. Há diminuição da resposta vestibular a estímulos calóricos2,4.
Quanto aos exames laboratoriais, não são encontradas alterações na velocidade de hemossedimentação, proteínas de fase aguda, marcadores autoimunes ou coagulograma, e não há evidências de associação com agentes infecciosos2.
A evolução habitual se caracteriza por ataques recorrentes, em número de 1 a 8, envolvendo um ou mais componentes da tríade. Os ataques são autolimitados, e entram em remissão após uma fase aguda que dura em média 18 meses. Um terço dos pacientes permanece com déficit cognitivo residual (demência leve a moderada) e distúrbios de marcha. Todos os pacientes descritos até o presente momento ficaram com algum déficit visual e auditivo. Nenhum óbito foi atribuído a esta síndrome. As alterações neurorradiológicas podem desaparecer após a fase aguda; o líquor e a fundoscopia podem se normalizar espontaneamente em algumas semanas2.
O diagnóstico diferencial é extenso e inclui esclerose múltipla, vasculites sistêmicas primárias (como doença de Behçet, granulomatose de Wegener, síndrome de Churg-Strauss, poliarterite nodosa e arterite de Takayasu, entre outros), vasculites secundárias (lúpus eritematoso sistêmico, sarcoidose, síndrome de Sjögren, crioglobulinemia), vasculites relacionadas a quadros infecciosos (sífilis, doença de Lyme, tuberculose, herpes zoster, toxoplasmose, etc.), arteriosclerose, quadros embólicos, doenças trombofílicas, uso de drogas como cocaína, metanfetaminas, ergotismo e doenças mitocondriais4.
Fatores que devem motivar investigação diagnóstica específica incluem quadros suspeitos de vasculite de retina7, hipoacusia neurossensorial em pacientes avaliados para esclerose múltipla, pacientes com audiograma revelando surdez neurossensorial bilateral predominando em baixas frequências e RM mostrando múltiplas hiperintensidades em T2 envolvendo substância branca e cinzenta, além de qualquer encefalopatia inexplicada em pacientes jovens2. É importante manter um alto grau de suspeição, já que a tríade descrita pode ocorrer de forma incompleta em muitos pacientes e a presença de déficit visual ou auditivo pode não ser identificada adequadamente em pacientes com encefalopatia. Os exames que devem ser solicitados para confirmação diagnóstica incluem campimetria, angiografia com fluoresceína, audiograma e RM de crânio, sendo que estes devem ser repetidos periodicamente nos primeiros anos da doença de forma a identificar piora do quadro, mesmo que assintomática2.
O tratamento da síndrome de Susac é controverso7, devido ao seu curso flutuante, progressivo e auto-limitado. Papo et al., em sua revisão de 1998 2, sugeriram o uso de antiplaquetários e/ou anticoagulantes associados à nimodipina como tratamento de primeira escolha (seguindo a hipótese tromboembólica e visando a melhora da irrigação microvascular). Corticóides em altas doses podem constituir a segunda opção de tratamento, seguidos de ciclofosfamida ou imunoglobulina intravenosas. A duração do tratamento, bem como o melhor esquema terapêutico, são incertos, devido ao desconhecimento quanto à provável fisiopatologia desta síndrome.
Concluindo, descrevemos aqui o que acreditamos ser o primeiro caso de síndrome de Susac da literatura brasileira. Enfatizamos a importância da investigação diagnóstica e do alto grau de suspeição necessários para sua identificação, que pode estar sendo subdiagnosticada em nosso meio, e reforçamos a noção da natureza benigna desta entidade.

REFERÊNCIAS
1. Susac JO, Hardimann JM, Selhorst JB. Microangiopathy of the brain and retina. Neurology 1979;29:313-316.         [ Links ]
2. Papo T, Biousse V, Lehoang P, et al. Susac syndrome. Medicine 1998;77:3-11.         [ Links ]
3. Mala L, Bazard MC, Berrod JP, et al. Petits infarctus rétiniens, cochléaires et cérébraux du sujet jeune, ou "SICRET" syndrome ou syndrome de Susac. J Fr Ophtalmol 1998;21:375-380.         [ Links ]
4. Petty GW, Engel AG, Younge BR, et al. Retinocochleocerebral vasculopathy. Medicine 1998;77:12-40.         [ Links ]
5. Susac JO. Susac´s syndrome: the triad of microangiopathy of the brain and retina with hearing loss in young women. Neurology 1994;44:591-593.         [ Links ]
6. O'Halloran HS, Pearson PA, Lee WB, Susac JO, Berger JR. Microangiopathy of the brain, retina and cochlea (Susac syndrome): a report of five cases and a review of the literature. Ophthalmology 1998;105:1038-1044.         [ Links ]
7. Gass A, Graham E, Moseley IF, Stanford M, MacDonald WI, Miller DH. Cranial MRI in idiopathic retinal vasculitis. J Neurol 1995;242:174-177.         [ Links ]
8. Wildermann B, Schülin C, Storch-Hagenlocher B, et al. Susac´s syndrome: improvement with combined antiplatelet and calcium antagonist therapy. Stroke 1996;27:149-150.         [ Links ]
9. Monteiro MLR, Swanson RA, Coppeto JR, Cuneo RA, Dearmond SJ, Prusiner SB. A microangiopathic syndrome of encephalopathy, hearing loss and retinal arteriolar occlusions. Neurology 1985;35:1113-1121.         [ Links ]
10. Schlossauer B. The blood-brain barrier: morphology, molecules and neurothelin. Bioessays 1993;15:341-346.         [ Links ]


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